Museu da Vila Velha
Aqui museu não significa mausoléu
O novo Museu da Vila Velha (MUVV), do arquitecto Belém Lima, ergue-se num lugar onde se unem origem e fim. Junto às ruínas da antiga muralha (limite do núcleo original da cidade), congrega o desordenado. Num pequeno sulco, uma inscrição dobrada, tectónica, anuncia os desígnios do museu: ARQUEOLOGIA. No MUVV, a distância e a proximidade à natureza preservam a contemplação. O repouso conduz ao movimento, os pequenos silêncios ganham sentido. O espaço vibra suavemente, como a recordação de um dia claro ou a brisa fresca de uma alvorada.
Num pequeno caderno, Belém Lima desenhou um fragmento anatómico. A partir dele, como Goethe, deduziu todo o organismo. Não se ficou pelo estudo do esqueleto como uma armação de ossos, juntou-lhe os ligamentos e o edifício ganhou vida. O resultado é um corpo bem articulado, mas nem sempre orgânico. As dissonâncias, enriquecedoras, provocam rupturas, perturbam a percepção. A unidade surge da multiplicidade.
Impregnada de experiência, a arquitectura de Belém Lima tem o poder de motivar. Desencadeia associações subterrâneas. Introduz o caos na ordem e a ordem no caos. Goza de uma delicada ironia. No MUVV, as portas do elevador, ao abrirem-se, convidam, não a subir, mas a ir em frente. Como fantasmas, desafiamos a matéria e atravessamos paredes. O edifício põe em movimento a fantasia, toca-nos fisicamente, desperta os sentidos. Trata-se de uma arquitectura que, desde a sua autonomia, evoca as outras artes. Enquadramentos cinematográficos abrem o museu para o exterior. Quem contempla a paisagem e quem passa na ponte-mirante participa num jogo cénico. O negro do chão lembra os quadros monocromáticos de Ad Reinhardt, o resgate de uma dimensão espiritual numa cultura secular. A luz crua, de um branco intenso e desconcertante, provoca o shock de um flash. O eco da natureza e da história, o tratamento do espaço e do tempo, produzem uma música quase imperceptível. Música feita pedra, como Goethe chegou a definir a arquitectura.
O acesso do público ao museu faz-se pelo pátio nascente, contíguo às pedras da antiga muralha. O MUVV recebe o visitante de um modo protector, mas logo provoca um confronto. Entrega-o de novo à natureza. As escadas, parcialmente a descoberto, parecem realizar a ideia poética de um homem que vive ao ar livre, sujeito às condições atmosféricas. A partir da sala de recepção, reconciliadora, o edifício vai-se desenvolvendo em crescendo. Da simplicidade à diversidade. A profusão de planos provoca uma ilusão de salas em sequência, um sem-fim de salas incrustadas como na casa de Goethe em Weimar.
Território acidentado. Uma rampa, escavada, lança-nos vertiginosamente sobre a paisagem. Também nos leva, cortando camadas, às profundezas do museu. Percorremos a história a contrapelo, desfazendo a trama do esquecimento. Nas “salas secretas”, o sedimentado, submetido ao trabalho dos arqueólogos, ganha uma segunda vida. Salas onde se cuidam os tesouros. Evocação da arte e dos seus ritos, das forças primitivas que operam longe do olhar dos homens e do artista que tenta arrancar à natureza divina o segredo da criação. Um reino de velhos espíritos, de sombras e transparências. Belém Lima serve-se da força do mito para libertar a arquitectura do mito que, despojado da sua literalidade, é transposto para o mundo das imagens. As escadas, banhadas por uma luz diáfana, trazem-nos de novo à superfície, ao encontro do dia. Das sombras, do negro, passamos à claridade magistral. Despertamos do sonho e do refúgio do passado.
No MUVV, o silêncio, o recolhimento e a abertura sobre o cemitério romântico trazem-nos à memória o conto de Kafka “A próxima aldeia”: «O meu avô costumava dizer: ‘a vida é espantosamente curta. Neste momento, comprime-se tanto na minha lembrança que, por exemplo, mal consigo perceber como pode um jovem decidir dirigir-se para a próxima aldeia sem temer que -abstraindo já dos acidentes infelizes- o tempo de uma vida normal e sem azares não baste nem de longe para tal viagem’»i . Os artefactos arqueológicos expostos no museu, que serviram o homem desde as idades do Bronze e do Ferro, olham-nos agora, placidamente, desde a vitrina que constitui a sua nova residência. Dolorosa é a ideia de que nos vão sobreviver.
Belém Lima concebe o MUVV como um “volume pétreo”, um “muro-perímetro”. Mas, o fechado abre mundos. Quanto mais mergulhamos na cultura, mais nos deparamos com a natureza. Quanto mais contemplamos a natureza, mais a cultura nos sobressalta. Silencioso, hermético, o MUVV aparece como mimese das escarpas graníticas que cingem os rios, mimese do trabalho arqueológico. Nele, o novo associa-se ao velho, ao arcaico. O passado percorre-o como seiva numa velha árvore. Se do exterior vemos um edifício compacto, do interior parece levitar, flutuar sobre a natureza e sobre as ruínas. Por um lado, é insondável, profundo; por outro, claro, esclarecedor. Como um enigma, o MUVV abre-se momentaneamente para logo se voltar a fechar. Aqui, museu não significa mausoléu. O passado pertence ao presente, transforma-se em actualidade. No Museu da Vila Velha, há lugar para o mistério, a utopia cifra-se como um segredo.
Susana Ponces Camanho e Emídio Lima Agra