Ampliação dos Paços do Concelho de Boticas
À distância de um grito
A nova Câmara Municipal de Boticas (CMB), de Belém Lima, recorta-se na paisagem com limites precisos. O edifício dá-se a entender como um imenso navio suprematista, momentos antes da partida. Desenvolve-se paralelo ao antigo espaço que assegurava os serviços camarários. Um volume em ponte estabelece as ligações entre o passado e o futuro. A entrada negra chama-nos para o átrio, explosão de branco. Do escuro para o claro, sem ambiguidades. No grande átrio, de pé direito triplo, a luz associa-se a uma imagem pura (pública). Errante e preguiçosa, palpável e irreal, dá ao espaço um sentido de festividade. Belém Lima recupera a ideia de praça, ágora, memória da participação. O serviço de atendimento, amplo e cómodo, encontra-se entre o átrio e duas grandes aberturas que formam um diorama: jardim e montanha. Uma rampa lenta marca o tempo das celebrações solenes, vestígio das cerimónias de culto. O salão nobre situa-se no topo. Dele podemos contemplar a chuva que cai vagarosamente durante horas, a beleza viva e inanimada dos flocos de neve que desaparecem misteriosamente no interior do edifício. O futuro parece sussurrar-nos como uma canção de embalar. A ala política ocupa um corredor no último piso, partilhando a altura do átrio. Sobre ela desce uma luz branca, como numa catedral, que desprende um brilho aurático. White on White. A austeridade e transcendência de Malevich em confronto com a cinética de Nadir. A sala da presidência prolonga-se na varanda, volta-se para a praça municipal que se enche de gente nos dias de comemoração.
A articulação do espaço gera movimento. Há mímica, como no teatro. Interpreta-se um peça quotidiana. Há gente que se cruza, que faz uma breve pausa, que conversa e segue o seu caminho. Um ir e vir contínuo, uma coreografia com sequências e ritmos contrastantes. De súbito, perdem-se as referências. Caminha-se no vazio ou flutua-se sobre uma nuvem. O movimento produz inquietação, desintegra o familiar, conduz ao desconhecido. Mas a desordem é apenas aparente. A conversa, os gestos e a dança migraram para a lei formal do edifício.
Na CMB, a arquitectura vai além das concepções meramente utilitárias, das funções imediatas. Rejeita o “útil puro” que participa na desertificação do mundo, na neutralização do espaço. Na arquitectura, útil é o que se torna humano, as formas e os espaços que deixaram de se murar contra os homens. Os desejos não se satisfazem por medida. Os limites do funcionalismo são também os limites do sentido prático dominante. Na CMB, a utilidade vai além do utilitarismo. Os fins convertem-se em espaço, transformação da nossa experiência com o mundo. O sentimento do espaço surge como um elemento que ultrapassa a finalidade, chega-nos como um “mais” que não foi construído.
Quando os hábitos de consumo e uma tecnologia com uma forte componente destrutiva parecem anular a diferença, a arquitectura de Belém Lima preserva-a transformando. Inserida num contexto global, confronta a identidade local com o outro, com o diferente. Trata-se de uma arquitectura que defende o particular, não como pura conservação, isolamento, refúgio ou regresso à origem, mas como uma voz que se ouve em conjunto com outras. Belém Lima supera a ideia de uma arquitectura limitada a uma identidade territorial. Pela sua plasticidade, pelo seu poder expressivo, pela mudança que introduz no existente, a CMB não se prende firmemente ao lugar. A intervenção tem elementos de ruptura, parece ter adivinhado o que falta. A CMB intensifica a experiência colectiva, indo ao encontro do “mundo da vida”. No espaço compreendido na distância de um grito, tamanho ideal para a assembleia segundo Aristóteles, a CMB abre novas possibilidades para as relações inter-subjectivas, enriquece as experiências sociais.
Susana Ponces Camanho e Emídio Lima Agra